terça-feira, 31 de maio de 2011

A Ilha e o Mar



Eu te ofereço versos furtados
Que correspondes com teu sorriso mais fingido.
Eu e você
Um lindo par de hipocrisias.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

O que há depois do ponto final?



Tivesse coragem te pediria indulto,
Imploraria voltasses,
Que foi loucura que me fez partir...

Admito,
Como mesma profetizaste
Arrependi-me.

Repasso tua forma tão inteira de me amar,
Esqueço teu ciúme,
E tudo que me fez desistir.

Me acovardo,
Sou a mesma egoísta de sempre
E tu cada dia mais linda.

MICROCONTO

Na semana última fui apresentada ao MICROCONTO, que nada mais é que um conto pequeno, um “cuí” de conto ou um conto “gitinho”, uma maneira de brincar com as ideias e palavras. Ótimo para quem é ansioso, pois começo, meio e fim, dá-se no espaço de apenas 50 letras.
Vale tudo: filosófico, poético, ecologicamente-politicamente correto, humor ácido. Para ter uma ideia de como a coisinha funciona, vide o mais famoso Microconto do mundo:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”
Augusto Monterroso

Agora que tudo se esclareceu. Garçom, por gentileza, outra rodada de Microconto.

“Havia certo protocolo entre elas. Aquele domingo seria colorido.”
Ana Oliveira

"- Diz que me ama.
- Aí é mais caro."
Beto Villa

Monólogo com a sombra
"Não adianta me seguir. Estou tão perdido quanto você."
Rogério Augusto

A Bíblia (special features)
"Olha, Pai, eu tentei, mas acho que não deu muito certo não..."
Antonio Prata

Fossa
"Faço amizade comigo para tomar uma cerveja"
Fabrício Carpinejar

“Ele estudara a Bíblia, o Corão, o Talmude, Confúncio, Buda e Platão. Mas continuava não entendendo bulhufas acerca da paixão.”
Carlos Seabra

“Era só amizade até que alguém apareceu com um giz de cera”.
Janete Lacerda

VAMOS LÁ, DEPOIS DESTA SEGUNDA RODADA, APROVEITA E DEIXA NO COMENTÁRIO O SEU MICROCONTO.

sábado, 28 de maio de 2011

Garçon! Por gentileza, uma rodada de Microconto...




Ah! E pendura na conta da minha amiga Ana.

"Decidira. Quando tudo se acalmasse diria a única verdade de toda aquela mentira."
Janete Lacerda

"Vida Nova. Só ontem consegui jogar fora a escova de dentes dela."
Samir Mesquita

"Um dia recebeu um telegrama a dizer que estava morto. A morte pedia-lhe ainda desculpas por não ter podido avisá-lo pessoalmente."
Vidas de Vidas

"No lugar de plantas plantou placas: não pise nas placas."
Daniel Minchon

"Recusou-se a assinar porque a vida não cabia em papéis."
Paula Ferreira

"Coçou a frieira e sangrou: prazeres dolorosos."
Fábio Moraes

"Estava indo e, quando viu, já havia voltado."
Manoela Galende

"- Minha solidão combina com a sua, vamos dançar?"
Affonso Guerrero

"Ao ver o carro capotado, o cachorrinho riu. Fim da fuga, pneu."
Dauro Veras

"Vamos parar por aqui que esse negócio vicia"
Janete Lacerda

sexta-feira, 27 de maio de 2011

ALGEMA


- E se eu não disser nada?
- Ficaremos aqui em silêncio por uma hora.
- Algema. Disse ela sem nenhuma expressão facial.
Agora ficaremos aqui pelos cinquenta e nove minutos que faltam em silêncio, pois eu não direi mais nada, pensou. Aquele homem era um torturador psicológico, nunca ninguém a tinha tratado assim, nem o padre com quem era habituada a se confessar era tão obstinado em saber sobre seus pecados mais perversos a ponto de mantê-la por uma hora trancafiada no confessionário.
Ele olhava para ela por cima dos óculos transparentes, aquele homem parecia um urso, continuou pensando, o rosto todo barbado, os cabelos num corte aéreo, os pelos do peito saindo pelo primeiro e único botão aberto da camisa azul safira e estupidamente passada, os pelos saindo pelas mangas enroladas até o meio do antebraço, tudo acinzentado, teve vontade de se levantar e simplesmente ir embora. Por outro lado, não poderia se deixar intimidar, se levantar e ir embora seria mostrar-se covarde, timorata.
De fato tinha ela seus medos, entre eles um medo terrível de sapo, na verdade um medo apavorante de sapo, indiferente se “Sapo Boi”, daqueles que aparentam um galeto assado respirando ou se aqueles microscópicos que entram no banheiro e que ninguém nota, a não ser quem tem olho treinado medrosamente para detectar sapos camuflados naquela massinha preta que separa um azulejo do outro, mas definitivamente não tinha medo de ursos, pelo menos nunca tinha ficado numa situação cara a cara com um urso para saber. Com medo ou sem medo ela decidiu ficar e ficar em silêncio pelos cinquenta e cinco minutos que faltavam.
Engraçado ela calada todo aquele tempo, quatro minutos sem dizer nada, nossa, ela que era tão comunicativa, prolixa até, será que resistiria a tentação de falar, falar só pelo costume, comentar a cor das paredes, a disposição dos móveis, a decoração, comentar qualquer coisa, por que sua língua não era acostumada a passar tanto tempo quieta, afinal, porque decidira ficar em silêncio se falar lhe dava tanto prazer, talvez fora a forma como parara ali, talvez fosse implicância com o cara de urso que ela acabava de conhecer, talvez realmente estivesse enlouquecendo como o seu marido argumentara, praticamente a obrigando a procurar terapia.
Ficar calada era bom, na verdade ela não estava calada, estava apenas enganando o médico. Muito legal isso, ela percebeu que não pronunciar palavras com a boca não significa necessariamente parar de falar, ela ainda não tinha parado de falar nem por um segundo daqueles dez minutos, tratava-se apenas de um caso de exclusão, ela tinha excluído, bloqueado o urso da conversa, ela estava aparecendo off para ele, mas para todo o resto estava on.
Uma coisa lhe ocorreu, talvez aquele homem nem fosse médico, talvez fosse alguém pago pelo seu marido para descobrir o que ela andava fazendo na internet, para saber o que ela andava fazendo quando não estava com ele, por isso ele inventara essa desculpa de que ela estava histérica, vinte e quatro horas e por todos os dias do mês em TPM, ela não se sentia histérica, estava no seu normal. Carlos convivia com ela há onze anos e ainda não sabia que aquele era o seu jeito?
Assim que saísse dali iria verificar se aquele CRM existia, se a foto que apareceria seria a de um urso grisalho, Carlos estava subestimando a sua capacidade de percepção de contexto, sua capacidade investigativa, afinal de contas, o que ele queria a induzindo a pensar que estava beirando a loucura, será que Carlos arranjara uma amante, será que Carlos queria se separar e era covarde demais para dizer abertamente que estava cansado dela, muito mais fácil dizer que estavam se separando por culpa de suas sandices, de seus ataques, dos quais ele era tão somente vítima indefesa.
Observou discretamente que o urso não olhava mais para ela, talvez ela começasse a vencê-lo pelo cansaço, talvez ele já estivesse entediado, ele não estava como qualquer outro psiquiatra da sua fantasia, cabeça baixa, escrevendo aquelas coisas que psiquiatras escrevem, seja lá que coisas sejam essas, ele estava pensativo, triste quem sabe, essa pelo menos era a impressão que tinha, talvez ele é que precisasse desabafar, talvez ela devesse perguntar se ele não queria se abrir com ela. Sabe-se lá se psiquiatras fazem terapia, pois se já sabem todas as respostas, fazer terapia seria assistir um filme que já se sabe de cor.
- Doutor?
Disse ela ao final do 12º inquietante minuto de silêncio.
- Pode se abrir comigo.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Desordem


Este é o teu último poema
Não quero banalizar-te,
Não quero dizer-te tudo,
Não quero que te satisfaças...

Hei de lembrar-te por hoje
No denso coração em que habitas,
Na desordem compassiva em que cominas.

Menina...
Guarde só mais este segredo
Que te segredo de forma abertamente íntima,
Não sei se te amo,
Por esta batida meio cabocla
Ou se és apenas mais uma onda
Neste meu fácil coração Amazonas
Ora hemisfério norte,
Ora hemisfério sul.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

E-mail: Eu e o Tempo

Sentou-se em frente ao computador decidida, depois de refletir por três semanas finalmente ela estava decidida a responder aquele bendito e-mail, mas o que dava raiva era aquela mania de protelar tudo, por que não agia como uma pessoa normal, pessoas normais leem seus e-mails e respondem, óbvio, pelo menos aqueles que valem a pena responder, ela queria responder, ela quis demais responder aquele e-mail tão bonito e inesperado, tão bom de ler, no entanto, sabe-se lá, estava sem palavras, fora culpa do e-mail, o e-mail a deixara sem palavras, de modo que depois de uma semana, talvez tivesse traçado um rascunho mental da resposta. “O tempo sempre me fez de gato e sapato. Não é à toa que meus pesadelos sempre são os mesmos: eu desesperadamente querendo chegar a um lugar e sempre muito atrasada, não consigo nunca! Esses pesadelos já estão tão cansativos que aprendi a controlar o meu medo deles. Digo pra mim mesma nos sonhos: já sei que não vou chegar atrasada, então vou me arrumar bem devagar e acabar com esse desespero... Na escola meu horário era da 2ª aula pra frente, eu não tinha mais cara de tanta história que eu inventava para porteiro me deixar pegar pelo menos uma vez na vida uma presença da primeira aula. Matei parente, tive várias doenças, fui atropelada, perdi o ônibus, a mais clássica era a que eu precisava entregar um trabalho valendo nota, só o meu bimestre valia 500 mil pontos, haja criatividade. Pra mim, o tempo sempre pareceu passar muito mais rápido do que pros outros, menstruei aos 10 anos, as outras meninas aos 12, 13 anos e eu só querendo brincar um pouco mais... Essa era a minha luta contra o tempo, sempre dando um jeitinho de esticá-lo, assim eu queria fazer o meu próprio tempo, fingindo não ter pressa. Prometi pra mim mesma que não faria nada sem antes garantir que eu estava pronta para aquilo e que realmente eu queria. Ignorei qualquer tipo de pressão psicológica, foram anos de treino... Às vezes eu me pego negando as coisas querendo elas. Acho que isso já virou mania. Mania de gente velha sabe, só pra não perder o costume. Mas a boa notícia é que o primeiro passo que gente viciada tem que dar é reconhecer que precisa de ajuda. E eu depois de muito custo já reconheci isso. O que eu faço agora? Espero? Bom nisso eu sou craque. Enquanto eu esperava essa resposta comecei a lembrar o porquê comecei a escrever esse texto. Ainda estou pensando naquele bendito e-mail que não respondi que ainda vou me desculpar por não ter respondido no tempo certo, mas quero fazer isso pessoalmente, odeio mal-entendidos e sou expert em deixar más impressões. A questão é que tenho tanta coisa pra te falar e tudo começa a partir do momento que li esse e-mail. Mas o que eu realmente queria falar era sobre o quanto eu fiquei feliz e envaidecida com o poema você leu pra mim, já perdi a conta de quantas vezes eu o reli. Adoro cada palavra, cada vírgula dele que sempre leio pausadamente... Porém o que mais me envaidece é ele ter vindo de quem veio. Pois eu também, assim como no poema, preciso confessar uma coisa. Não estou apaixonada. Meus sentimentos nada têm de avassalador ou repentino, muito pelo contrário, o que eu sinto veio bem devagar, como tudo o que é bom que eu já conquistei na vida. A verdade é que eu sou muito lenta pra perceber as coisas que gritam na minha cara, da mesma forma que demorei pra ler o e-mail, então disso você já sabia. O que eu queria que você soubesse é que eu te admiro tanto e passei a te admirar mais ainda depois de cada texto seu que li, depois que conversamos por telefone e depois de te ver recitando poemas no sarau. E creio que isso só tem a crescer. Estou encantada com teus textos que despertam em mim uma mistura de sensações e quando eu ler especificamente os poemas me lembrarei da tua cara cínica recitando poesia, aquele olhar que tirava minha roupa e me deixava sem jeito e sem saber o que fazer. Claro, além dos textos que você ainda vai escrever, os quais já espero com ansiedade. Estou falando dos seus textos, mas não posso deixar de falar de você, que me encantou com teu jeito, com esse teu poder de persuasão que acredito não existir ninguém que não se convença ou que resista a ele. Recapitulando: não é paixão o que eu sinto. Acho que é amor, porque eu amo o jeito que você fala estar apaixonada, já amo o teu sorriso, e amo o jeito que me convences das coisas. E quanto a mim? Acredito que a única coisa que me resta agora é te obedecer... Aposto que a próxima ordem tua vai ser […]”
Que raio de resposta era aquela, como ela poderia dizer tal coisa, talvez devesse refletir por mais uma semana, um mês quem sabe, talvez estivesse se confundido com sua forma de se exprimir ou interpretado tudo errado. É certo que recebera uma ligação sua no dia seguinte, chamada esta que durara duas horas, é certo que a outra a apanhara em casa e a levara para um evento totalmente inusitado como um sarau de poesia, é certo que fez caras e boca e lera vários poemas olhando-a diretamente nos olhos, é certo que a deixara em casa no final e ainda ficara para um café de cinco minutos, mas daí pensar, dizer o que estava dizendo nesta resposta absurda. Não! De modo algum mandaria tal resposta, se estivesse escrito aquilo tudo numa folha de papel é certo que neste instante restariam apenas os pedacinhos amassados dentro da lixeira sob a mesa do computador. De fato ela não tinha como rasgar sua resposta de e-mail, mas o botão “Delete” morava bem ao lado do “Enter” e ela estava prestes a “redecidir-se”. Onde estaria o porteiro da escola nesta hora, ele que conhecia suas melhores desculpas, onde estava ele na hora de responder um e-mail como aquele, será que ainda estava vivo para lembra-la de dizer simplesmente: “Olá. Só hoje li o seu e-mail, estava meio sem tempo de acessar a internet, você sabe como é. Não sei se te falei, mas estou com um parente internado no hospital, passo praticamente o dia todo lá, para completar peguei o ônibus errado outro dia e fui parar nos confins desta cidade que mal conheço, quando finalmente consegui pegar o ônibus correto ele quebrou, deu uma freada tão brusca que torci os dois punhos ao segurar firme o corrimão na ânsia de não me estatelar toda em cima dos outros passageiros e como se não bastasse tive que pedir ajuda a uma amiga, pois tinha um trabalho enorme da faculdade e sem poder digitar com os punhos inchados, foi o jeito recorrer terceiros. Bem, mas como ia dizendo, eu só li seu e-mail hoje, li de relance e só estou respondendo para que você não pense que a estou ignorando, quando tiver um tempo livre vou lê-lo de novo e mandar uma resposta decente. Um abraço. Virgínia.”
Apertou o “Delete” e com a nova resposta apertou o “Enter”, pois decididamente essa sim era a melhor resposta.


Por Aline Monteiro & Janete Lacerda

sábado, 21 de maio de 2011

O Amor em Mim


O amor em mim
É um filho muito quisto
Crescendo em minhas entranhas,
Uma semente delicada
No segundo seguinte à eclosão.
O amor cresce em mim
Nutrido pelas gotas do meu empenho,
Iluminado pelo sol desesperado
Do meu querer...
O amor em mim
É afagado como um filho
Dentro da barriga,
Carinhosamente,
Um filho com vontade própria
Um embrião que percebo agora
Não deseja vir à luz.
Ainda assim
Serei toda cuidados,
Serei toda repouso e quietude,
Depois de tanto a esperá-lo
Me reservo o direito
De manter as esperanças.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Recurso de Estilística



Isto é paixão
Não deixarei subentendido
Nem entre linhas,
Não usarei recurso de estilística,
Nem metáforas,
Eu quero dizer abertamente.
Queria palavra escrita
Com recurso sonoro,
Para não só deixar claro,
Mas com toda força
Do meu diafragma
Gritar...
ISTO É PAIXÃO.
Eu sei que é paixão
Por sua forma repentina,
Avassalante.
Eu li um poema,
Li outro poema,
Fui seduzida
Pelas vírgulas bem colocadas,
Pelas construções frasais,
Pelas antíteses paradoxais,
Pelos versos livres,
Vestidos de rimas sutis,
Eu fui seduzida,
Estou viciada,
Preciso da química
Da tua poesia...
Eu sinceramente não sei onde
Ou se devo me internar.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Pretérito IMPERFEITO







Esta não é mais uma aula de conjugação verbal
Para o teu português para lá de retilíneo.
Eu só preciso que tu saibas que:

Eu preferia que fosse só isso
Tu preferias que fosse só isso
Ela preferia que fosse só isso
Nós preferíamos que fosse só isso
Vós preferíeis que fosse só isso
Elas preferiam que fosse só isso

Eu novamente...
Por que,
Eu preferia que fosse só isso
Mais do que todas as vozes verbais.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Para o meu Futuro Amor


Uma gota,
Uma gota bem pequena,
Uma gotinha
Dessas imperceptíveis
Para que não percebas,
Meu bem,
Coisa que nem eu sabia,
Que eu queria,
Que eu quero,
Meu completo motim.
Quero acordar-te com os vapores
Do meu cappuccino,
Do meu café preto,
Com mil beijos aromatizados,
Para quando pensares e levantar cedo
Teres motivo bastante justo
Para ficar mais um pouquinho.
Eu que odeio diminutivo,
Vou te dar apenas uma gotinha,
Minha querida,
Uma gota por dia
Da minha gentileza,
Dos meus cuidados
Quase sem toques
Para que não percebas
Que não sou muito carinhosa.
E quando cansares de tudo isso,
E quando cansares da empresa,
Eu te prometo, vou embora,
Até quando a saudade te trouxer de volta,
Até que percebas que rotina e monotonia
Têm cada qual o seu significado
E que vida de casado
Pode ser muito divertida.

DESENCONTROS

Ela queria o começo, o ponto de partida, entrar numa máquina do tempo e voltar exatamente para aquele lugar, entretanto, não desejava ir sozinha, quisera partir levando consigo toda a experiência acumulada, todas as decepções, todas as bobagens que fizera e todas as alegrias fugazes a exaurir lhe as esperanças até o ápice do oco existencial que era agora.
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, fora exatamente naquele período do tempo para o qual ela desejava voltar presentemente que lera em “A Paixão Segundo G.H.” de Clarice Lispector esta frase que de forma súbita e sem nenhuma justificativa ressurgiu de algum lugar do seu subconsciente. Ela abriu a janela do quarto pela manhã e ouviu em sua própria voz “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, lembrou-se do quanto achou esta frase instigante no instante em que respirava vinte anos, na realidade, incompreensível, pois como o nada poderia ser frio e úmido? Para ela o nada era nada e ponto final, o nada era o vácuo, o completo vazio e o completo vazio não pode ter cheiro, nem sabor, muito menos temperatura e densidade, o completo vazio era capaz de nem existir, pois se todo universo é preenchido por diminutas partículas como poderia o nada existir?
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”..., depois da enésima repetição mental ela disse em voz alta e cheia de tédio com quem dissesse para a tagarela dentro da sua cabeça, “Tá bom, eu já sei, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, sim e dai?”
As pessoas têm momentos adequados para entrarem em nossas vidas, por isso, tantos desencontros, os desencontros são, portanto, a “pessoa certa no momento errado”, a “pessoa errada no momento certo”, a “pessoa errada no momento errado”, pois, a “pessoa certa no momento certo”, isso sim, é o que todo mundo deveria ter. Neste caso, fora a opção “pessoa certa no momento certo”, a pior das três restantes é “a pessoa certa no momento errado”, pois somente ela é capaz de despertar no homem o desejo de construir a tal máquina do tempo.
Por isso ela queria volver, mas volver acompanhada, não queria voltar a ter 20 anos, queria viver 1992 em 2011, aos 39 anos. Não. Para que inventar estórias? Ela não queria reencontrá-la, coisa perfeitamente possível, ela queria encontrá-la pela primeira vez agora em 2011 e aos 39 anos, queria que se apaixonassem como se apaixonaram, pedi-la em casamento logo no primeiro dia, pois não havia dúvidas de que em 2011, diferentemente de em 1992, seria para sempre, foi o que ela prematuramente concluiu ao chegar ao nada frio e úmido daquela manhã de sol.
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, de fato e contraditoriamente o nada existia, o nada tinha forma, tinha cheiro, tinha até endereço pré-definido, o nada vivia silenciosamente nas paredes daquele quarto escuro do qual ela fugia, para o qual ela protelava voltar todas as noites, inventando, por isso, inúmeros compromissos que lhe permitiam andar a esmo pela rua até altas horas. As praças, os passeios públicos, qualquer lugar era melhor que dividir a cama com o nada e por isso ela acumulava noites insuficientes, como a anterior, melhor, a madrugada finda em que não ela, mas o seu corpo fadigado se desligou às quatro e meia.
“As coisas acontecem exatamente quando devem acontecer. O nada existe, mas é abstrato e não, não é possível construir máquinas do tempo”, pensou. O sol ardia nos seus olhos, há muito que ela não olhava o dia sem óculos escuros, os óculos que eram a única coisa que ela via adiante. Ela não tinha objetivo, pois seu único objetivo era construir uma máquina que descobrira impossível, ela estava sozinha, pois até o nada lhe furtava cuidado, o nada naquele momento era todo confabulações com a aborrecida rotina que ela estava vivendo.
“Acabou!”, lembrou. Como deve ter doído na outra escutar esta palavra, como lâmina japonesa abrindo-lhe o coração de um só golpe, “Acabou!”, uma palavra e perdera para ela mesma, irremediavelmente, a pessoa mais especial de todas. Pior! Perdera para sempre, posto que, se aquela que afirmava não existir o nada por razões muito lógicas não existia mais como acreditar na possibilidade de reencontrar alguém 1992 em 2011. Além, como afirmar que estaria feliz se não tivesse dito a amolada palavra.
Eram muitas divagações para uma manhã de arder os olhos, e tudo porque Clarice resolvera se levantar do túmulo para acordar lhe a noite mal dormida com a frase: “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”.
Ela fechou a janela, ligou o abajur e enquanto procurava na prateleira caótica o tal livro, disse para que também as paredes ouvissem: “É Clarice, eu também cheguei ao nada e você tem razão, ele realmente é frio e úmido, agora preciso reler o livro, preciso lembrar do que vem depois”.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Engano


Tenha cuidado sim
Com minha dupla personalidade,
Com aquela em que me transmuto
Quando me deito na tua cama
E te aprecio de rés o chão.
Continues em guarda
Quando notares entre meus dentes,
Nem um bocadinho da suavidade,
Que tu de tal maneira aprecias.
Sim, sejas cautelosa quando virdes
Na minha cara mais cínica,
A mais ampla contradição,
Mas não tenhas tanto receio
Desta que tu afirmas
Completa desconhecida,
Que a escritora que mora em mim,
É, tranquilamente,
A mais ardilosa das duas.

domingo, 15 de maio de 2011

Mensagem para o Interior

Acordara antes do galo e olha que o galo acordava muito cedo, preparava uma chaleira de café, café plantado, colhido, torrado e moído por ela mesma, estranho é que o galo até àquelas horas continuava dormindo, mas talvez fosse culpa da galinha recém chegada que o galo de calça-comprida se adiantou em botar para dentro do seu galinheiro, assim, com pronome possessivo, do seu galirém. O rádio em AM chiava mais do que dizia alguma coisa, ela aborrecida correu para ajeitar o Bombril, afinal era justo acordar tão cedo e ainda perder o radialista anunciando as Mensagens Para o Interior? Plantou um tapa no meio do rádio, ele deu uma melhorada, mais um tapa na lateral e pronto o rádio desandou a falar que era uma beleza, talvez a pilha estivesse fraca, deixasse estar que quando seu Bené passasse pelo rio ela iria comprar uma dúzia de Rayovac das grandes e de preferência encomendar um rádio novo. Quando chegasse o tempo do açaí, quem sabe o seu Bené aceitasse trocar algumas latas do produto e alguns cachos de banana por um rádio que não precisava ser novo não, bastava funcionar.
Ao fundo uma canção dizia: “Faço tudo pra te encontrar, meu amor você não está em nenhum lugar, a você me dediquei, o meu amor te entreguei...” Era a música deles. Foi na festa de Santo Antônio, no rio Aranaizinho que eles se viram pela primeira vez, a verdade é que ela o viu primeiro durante o torneio de futebol cujo prêmio era um boi, o time dele era favorito, mas acabou perdendo para outro que tinha vindo da localidade de Periquitinho Verde, eles, por outro lado, não se chatearam, estava de bom tamanho a grade de cerveja do segundo lugar. Ela comentou com a prima que assistia ao jogo com ela o quanto o rapaz era bonito e logo descobriram que ele estava sem namorada no momento, mas que apesar da solteirice momentânea, ele era namorador feito o galo da sua casa.
A aparelhagem que tocava na festa era a São Paulo, dona dos melhores vinis, ele de banho tomado reparou nela ali pertinho no salão, ela retribuiu as olhadelas, e justo quando tocou a música que tocava agora na rádio ele tomou coragem e convidou-a para dançar uma parte, coisa muito rápida, só deu para ela dizer que se chamava Rosa e saber que ele se chamava Nailson, por que o seu Luis apareceu na porta do salão e fez cara de quem não gostou nenhum pouco de ver a filha dançando com o rapaz.
A próxima festa só seria dali dois meses e ele morava tão longe, há quatro horas de barco, mesmo assim ela esperou pacientemente pela festa e pela outra, e pela outra, de modo que se poderia dizer que estavam namorando, ainda que às escondidas.
“E atenção para as cartas dos nossos ouvintes”, disse o locutor, entrou a vinheta que dizia “Rádio Clubebebebebe, mensagem para o interior”, ela escutou um grito do galo, que não estava necessariamente cantando, mas não deu atenção, precisava saber se tinha alguma mensagem dele ou da mãe que estava para a cidade tendo neném. O locutor iniciou, “De Antônia para Santana no Rio Mutunquara. Santana, estimo que estas vos encontre com saúde, por aqui estamos bem, graças a Deus, só a mamãe que passou ruim das cadeiras estes dias, mas agora já ta melhor. Mando lembrança pra Jurema e aviso que não vou poder levar o corte que ela me pediu porque o dinheiro acabou, mas se ela ainda quiser é só mandar o dinheiro pelo Zé Pretinho ou pelo Curió que ainda vamos ficar por aqui até o dia vinte. Um abraço da sua irmã Antônia”. Ela nem sabia que a Totônia tava para a cidade, talvez tivesse ido no mesmo barco da linha que a sua mãe. O locutor leu mais cinco cartas e depois finalmente disse, “De Nailson para alguém no rio Aranaizinho. Adorei lhe conhecer, pena que o teu pai não gosta de mim e é só por isso que não digo o teu nome. Estou com saudade, estou esperando ansiosamente a festa de Gurupá. Quem sabe a gente pode se encontrar por lá. Não acredite no fuxico desse povo, esse pessoal fala muito. Se tudo der certo, eu já falei com meu pai, na festa de Gurupá mesmo eu te trago pra morar aqui. Eu já comecei a fazer uma casinha e queria muito saber se você vai ter coragem de fugir comigo. Por favor, tente me mandar a resposta por aquele meu amigo que sempre vai ai na tua vila. Um beijo cheio de saudade do rapaz que tanto lhe ama. Nailson”.
O coração quase lhe saiu pela boca, ainda bem que nem o pai nem a mãe estavam em casa, pois era capaz deles desconfiarem daquela história. O galo deu mais um grito no quintal, o locutor encerrou a sessão de carta sem dar notícias da sua mãe. Ela foi ver o motivo do escândalo do galo, mas a única coisa que viu foi o galo já sem vida, estrangulado por uma combóia.

Pedido


Por favor,
Esvazie meu coração
E com uma bombinha
Enche ele de ti...
Seja o gás
Que me levará tão longe
E tão alto
Que nem com a habilidade
De uma ave migratória
Seria capaz volver...
Por favor,
Seque meu coração
E com uma cuia ribeirinha
Enche ele de ti...
Em resposta ela diz:
“Isso é tudo que posso,
Preencher até certo ponto
As lacunas dos teus poemas...”

Poeta Aline Monteiro


Estou fazendo este aparte para divulgar o trabalho da brilhante escritora e poeta que é Aline Monteiro a quem tive o privilégio de conhecer no encontro de poetas que acontece toda sexta-feira em Macapá, chamado "Boca da Noite".
Para não me prolongar e nem ficar aqui rasgando seda, estou postando um belíssimo poema de sua autoria e deixando o endereço do seu blog (FOTO SUPRA) para que os senhores visitantes possam ver como seus próprios olhos do que estou falando... Um grande abraço e divirtam-se com toda a suave impetuosidade de Aline Monteiro.

TEUS CABELOS

Talvez eu me perdesse em teus cabelos
Só em teus cabelos...
Mas gostaria de, primeiramente olhá-los
Por longos e intermináveis minutos
Que eu não perderia tempo contando.
Repararia o tamanho dos fios
Distinguiria as cores
Imaginaria a textura, a maciez
Inventaria um perfume
Que minha certeza decretaria: é único!
E quando eu não suportasse mais
O desejo de tocá-los eu te pediria:
Deixa eu morar em teus cabelos?!
E se assim me permitisses
Como o descobridor do novo mundo
Eu te exploraria através dos teus cabelos
Tocaria fio a fio deles
Com a ponta dos meus dedos
Depois lentamente os entrelaçaria
Até o fundo dos teus pensamentos
Deslizando minhas mãos até a tua nuca
Para que delas fizesses teu divã
E repousasses teus anseios
E tudo mais que quisesses me dizer
Eu te ouviria
Em meu silencio mais sincero
E com toda a minha atenção
Sem que me pedisses
Eu te compreenderia...
Talvez eu me perdesse em teus cabelos
Só em teus cabelos...

Aline Monteiro

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Delator


Tua presença
Não noto
Quase sempre,
Mas,
Vez por outra,
Sinto-te
Cavando-me bem no meio
De dentro pra fora,
Na palma da minha mão
Ou em outra parte
De contínuo
Prestes a sair...
Tu na ponta dos meus dedos,
Me denuncias,
Tu desvairado,
Rompendo em meus pulmões
Vapor ligeiro e abrasador,
És malsim
De anseios ocultos,
Anseios que te demudam
E tu alterado
Reflete em mim
Num ciclo
Autossustentado.
Esta arritmia,
Este gelo extremo
Das extremidades,
Esta falta de ar
Me desconcerta,
E eu articulo com a boca
Qualquer desculpa
E tu a revelia
Diz a verdade,
E tu ermo covarde
Colore-me a face de encarnado,
Só pra que ela saiba,
Que o tom das unhas suas
É o mesmo
Da minha sem-vergonhice.

sábado, 7 de maio de 2011

Irmãs mais Velhas


Somos quatro,
Minha irmã, Eu, Meu irmão
E minha irmã mais nova,
Mas contemporâneas
Só minha irmã mais velha
E eu...
Temos tantas coisas só nossas,
Tantos delitos infantis
Dos quais uma foi cumplice da outra...
Tantas miudezas
Que só nós duas somos capazes de lembrar.
Aquela bala do nosso tempo de menina
Que tinha lá na taberna do vovô,
O guaraná Garoto
E o Mirinda que agora virou Fanta.
Também tinha assovio do papai atrás de casa
A boca da noite, depois do lavor,
O assovio que anunciava o bombom
Os pirulitos motivo de briga.
Pois preferíamos o mesmo sabor
E o papai sempre trazia
De dois sabores diferentes,
Um de morango outro de uva,
E nunca tivemos a ideia de pedir que ele trouxesse
Pirulitos com a mesma casca,
Solução da nossa disputa.
Não! A gente era chegada num barraco,
Ela gostava de me arranhar com aquelas garras
Que ela cuidava com tanto primor,
Eu adorava mostrar para a mamãe chorando
O meu braço todo agatanhado,
Adorava ver minha mãe cortando,
Rente carne,
A vaidade da minha irmã.
Mas depois paramos com as brigas,
Vieram nossos irmãos mais novos
Vieram as fraudas sujas,
Que éramos obrigadas a lavar
Com a mesma cumplicidade delituosa.
Ficamos ambas para o canto,
Somos as irmãs mais velhas
Temos lembranças só nossas
Laços que nos une para sempre,
Somos, nós duas, mais que metade
Dos filhos dos nossos pais.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

“Deux cafés s’il vous plaît”

Deux cafés s’il vous plaît”.
Tão elegante dizer: “Deux cafés s’il vous plaît”, ela disse sorridente do fundo da sala no meio da prova de francês.
Quando completaria o curso de francês, melhor quando ela poderia ir à França para poder realizar este sonho de dizer, “Deux cafés s’il vous plaît”?
Perguntei se ela ao menos gostava de café, ela respondeu muito empolgada que sim, mas o que ela queria mesmo era poder chamar o garçom e dizer pausadamente, “Deux cafés s’il vous plaît”, um “Deux cafés s’il vous plaît” suave, cheio de bicos.
Pensei em várias coisas, em por que “deux cafés” se ela era apenas uma, o correto neste caso não seria dizer, “Un café s’il vous plâit”? Enfim, pensei em dizer para ela incrementar um pouco mais a frase, afinal depois de três anos de curso seria ilógico chegar numa cafeteria francesa e dizer simplesmente “Deux cafés s’il vous plaît” ou “Un café s’il vous plaît”, eu, pelo menos, diria toda a primeira lição, “Bonjour, Monsieur! Je m’appelle Nicolle, Nicolle Falco, j’ai 32 ans, je suis brésilienne et vous, vous vous appelez comment?"
Claro, o garçom ficaria me olhando desconfiado, eu me apresentando assim para ele, claro que ele me acharia maluca, os franceses são tão cheios de formalidade que desconfio que depois desta abordagem ele chamaria outra pessoa para me atender. Paciência!
Tudo bem, nós teríamos que pensar numa outra frase de efeito, que poderia começar como a minha, “Bonjour, Monsieur!”, depois o sonho dela, “Deux cafés, s’il vous plaît”, ai completariamos com outra coisa igualmente chic, “sans sucre, deux toast avec de fraise et de l'eau avec gaz”. Assim estava ótimo, “Bom dia! Por gentileza dois cafés sem açúcar, duas torrada com geleia de morango e uma água com gás”.
Na próxima aula eu vou procurá-la para esclarecer de uma vez por todas porque “Deux cafés”, na próxima aula eu vou convidá-la para tomar “Deux cafés” comigo, não obstante desconfiar que em vez de "Deux cafés", pediríamos “Trois cafés” ou talvez na próxima aula eu apareça séria e compenetrada como o habitual e continue por estes dois anos e meio que ainda restam sem saber por que cargas d'água “Deux cafés”.

O Gato

Antes do cão havia o gato, o gato era mais impessoal, protocolar, não era de festa, não tinha expressão, nunca estava triste, nem ficava alegre, no máximo raivoso, quando se via nele eriçarem-se todos os pelos do dorso. O gato era silencioso, reticentes em seus miados, era independente e agia com indisfarçável interesse.
O gato não podia ouvir o barulhinho do pacote de salgados sendo aberto, que vinha mais que depressa, porém, sem vozearia, sem algazarra, vinha com sua leveza de pluma clássica e se enroscava na perna da moça ingênua, numa infinda coreografia de oitos até que ela estendesse para ele o aperitivo.
O gato era cheio de preferências, gato de fino trato, não gostava de Castanha do Brasil, preferia Avelãs ou Pistaches, o gato era refinado, não comia sardinha, só atum, atum triturado e sem óleo com uma pitada de molho shoyo e duas gotas de azeite importado extra-virgem e isto se não fosse semana santa, pois nesta semana não aceitava nada menos que bacalhau à portuguesa.
O gato se magoava, andava sobre os móveis mais altos, olhava de canto de olho e fingia greve de fome, de modo que ela ficasse cheia de dedos. Ela o acariciava de cabo a rabo, mas quando chegava no rabo ele puxava de volta, ela preocupada ligava para o médico, o gato não andava bem, estava sem apetite, sem ânimo, o gato dava sinais de depressão.
Ela passava no supermercado, na fileira das rações mais caras, que por sinal também eram as preferidas do gato, atrás daquele patê de fígado de ganso que era a única coisa que poderia levantar o seu astral. O gato mal agradecido fazia cara de nojo, empurrava o prato com a patinha até que ela desistisse de tentar fazê-lo comer e ligasse para uma amiga que também tinha um gato, a fim de se aconselhar sobre quais eram as melhores medidas que o caso requeria.
Sem solução ela acabava por se entregar ao sono ao lado do prato intocado do gato, que só então, às escondidas, se deixava comer livremente. A cara do trabalho no dia seguinte era a mesma do dia anterior, retocado de duas marcas roxas sob os olhos e da feitura do cabelo desgrenhado. O gato indiferente, nada de anormal acontecera.
Ela de volta para casa e ele sem festa, ele num canto, um olho aberto e outro fechado, virava a cabeça para a direção oposta, o gato nunca olhava no olho, a não ser para censurar a desatenção com que ele era tratado. O gato preto de olhos verdes, à imponência de um puma africano, pelo brilhante, um gato chic era o que todo mundo dizia.
Gato é bicho educado, não deixa surpresinhas pela casa, gato é bicho limpo, auto-limpante, "Tão meigo", diziam as visitas. O gato era aparecido, fazia sala, poses, oitos e oitos nas pernas dos convidados, deitava até no colo da anfitriã quando havia alguém para apreciar, tão meigo, tão carinhoso, até que a visita sumisse atrás da porta e o gato, onde o gato.
Era bom ter um gato em casa, não ficar sozinha, um gato para ocupar a solidão, mas o gato era tão cordato que quase não se percebia a sua presença.
Numa manhã o gato portou-se especialmente discreto, tanto que ela não o viu pelo dia inteiro, e nem no outro, e nem na semana seguinte, ela começou a gastar menos, pois com o gato desaparecido para quê comprar ração. As pessoas até deram por falta do gato, mas ela dizia que isto era coisa de gato, já, já ele surgiria de detrás de uma cortina, porém, o gato se manteve circunspecto, a outra apareceu com o Labrador e foi então que ela teve a ideia de tingir a parede do quarto de azul.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Mãe

Gostaria de dedicar este poema a minha mãe, minha Raimundona (ela não gosta que ninguém a chame assim, isto é exceção minha), também a dona Ana Maria (mãe de Ana - pássaro da asa quebrada) uma pessoa muito querida que conheci a pouco tempo e de quem eu furtei alguns versos interessantes. E como mãe é sempre igual, sintam-se a vontade para presentear também as vossas mães com este poema recém nascido.

Um grande beijo a todos e um feliz dia das mães, junto das vossas mães que ainda estão neste plano e de coração para aqueles que esperam o reencontro no plano espiritual.


Lá vens tu de novo
Com essa história
De que ando pele e osso,
Pois ainda que eu beirasse
Os cento e cinquenta quilos
Ainda ai verias
A minha desnutrição,
A falta da tua comida.
Lá vens tu de novo
Com essa história
De que não paro mais em casa,
Que só chego de madrugada -
Quando chego -
E saio antes do dia raiar.
Isto agora, não nego...
Sou aquele pássaro
Que criaste em cativeiro
Ante beijos e afagos,
Mas que aprendeu a voar.
O pássaro que sempre volta
Cabisbaixo, asa quebrada,
Para você consertar...
E você sempre me ajeita
De bom grado,
Faz para mim o melhor prato
Taca a mão na minha testa
Pra testar se estou febril.
Não se engane
Que isto é tolice.
Eu sempre voltarei
Para detrás da tua saia
Quando o negócio apertar.
Das volta curtas ou estendidas,
Não se engane,
Isto é tolice,
Eu sempre vou voltar,
Pois sou tua cria,
Sou tua filha
E se eu nunca te disse, Mãe,
Que Tu és mais que a minha vida
Não se engane
Que maior que esta verdade
Só tem uma
A de que nunca vou te deixar.