sexta-feira, 27 de maio de 2011

ALGEMA


- E se eu não disser nada?
- Ficaremos aqui em silêncio por uma hora.
- Algema. Disse ela sem nenhuma expressão facial.
Agora ficaremos aqui pelos cinquenta e nove minutos que faltam em silêncio, pois eu não direi mais nada, pensou. Aquele homem era um torturador psicológico, nunca ninguém a tinha tratado assim, nem o padre com quem era habituada a se confessar era tão obstinado em saber sobre seus pecados mais perversos a ponto de mantê-la por uma hora trancafiada no confessionário.
Ele olhava para ela por cima dos óculos transparentes, aquele homem parecia um urso, continuou pensando, o rosto todo barbado, os cabelos num corte aéreo, os pelos do peito saindo pelo primeiro e único botão aberto da camisa azul safira e estupidamente passada, os pelos saindo pelas mangas enroladas até o meio do antebraço, tudo acinzentado, teve vontade de se levantar e simplesmente ir embora. Por outro lado, não poderia se deixar intimidar, se levantar e ir embora seria mostrar-se covarde, timorata.
De fato tinha ela seus medos, entre eles um medo terrível de sapo, na verdade um medo apavorante de sapo, indiferente se “Sapo Boi”, daqueles que aparentam um galeto assado respirando ou se aqueles microscópicos que entram no banheiro e que ninguém nota, a não ser quem tem olho treinado medrosamente para detectar sapos camuflados naquela massinha preta que separa um azulejo do outro, mas definitivamente não tinha medo de ursos, pelo menos nunca tinha ficado numa situação cara a cara com um urso para saber. Com medo ou sem medo ela decidiu ficar e ficar em silêncio pelos cinquenta e cinco minutos que faltavam.
Engraçado ela calada todo aquele tempo, quatro minutos sem dizer nada, nossa, ela que era tão comunicativa, prolixa até, será que resistiria a tentação de falar, falar só pelo costume, comentar a cor das paredes, a disposição dos móveis, a decoração, comentar qualquer coisa, por que sua língua não era acostumada a passar tanto tempo quieta, afinal, porque decidira ficar em silêncio se falar lhe dava tanto prazer, talvez fora a forma como parara ali, talvez fosse implicância com o cara de urso que ela acabava de conhecer, talvez realmente estivesse enlouquecendo como o seu marido argumentara, praticamente a obrigando a procurar terapia.
Ficar calada era bom, na verdade ela não estava calada, estava apenas enganando o médico. Muito legal isso, ela percebeu que não pronunciar palavras com a boca não significa necessariamente parar de falar, ela ainda não tinha parado de falar nem por um segundo daqueles dez minutos, tratava-se apenas de um caso de exclusão, ela tinha excluído, bloqueado o urso da conversa, ela estava aparecendo off para ele, mas para todo o resto estava on.
Uma coisa lhe ocorreu, talvez aquele homem nem fosse médico, talvez fosse alguém pago pelo seu marido para descobrir o que ela andava fazendo na internet, para saber o que ela andava fazendo quando não estava com ele, por isso ele inventara essa desculpa de que ela estava histérica, vinte e quatro horas e por todos os dias do mês em TPM, ela não se sentia histérica, estava no seu normal. Carlos convivia com ela há onze anos e ainda não sabia que aquele era o seu jeito?
Assim que saísse dali iria verificar se aquele CRM existia, se a foto que apareceria seria a de um urso grisalho, Carlos estava subestimando a sua capacidade de percepção de contexto, sua capacidade investigativa, afinal de contas, o que ele queria a induzindo a pensar que estava beirando a loucura, será que Carlos arranjara uma amante, será que Carlos queria se separar e era covarde demais para dizer abertamente que estava cansado dela, muito mais fácil dizer que estavam se separando por culpa de suas sandices, de seus ataques, dos quais ele era tão somente vítima indefesa.
Observou discretamente que o urso não olhava mais para ela, talvez ela começasse a vencê-lo pelo cansaço, talvez ele já estivesse entediado, ele não estava como qualquer outro psiquiatra da sua fantasia, cabeça baixa, escrevendo aquelas coisas que psiquiatras escrevem, seja lá que coisas sejam essas, ele estava pensativo, triste quem sabe, essa pelo menos era a impressão que tinha, talvez ele é que precisasse desabafar, talvez ela devesse perguntar se ele não queria se abrir com ela. Sabe-se lá se psiquiatras fazem terapia, pois se já sabem todas as respostas, fazer terapia seria assistir um filme que já se sabe de cor.
- Doutor?
Disse ela ao final do 12º inquietante minuto de silêncio.
- Pode se abrir comigo.

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