terça-feira, 17 de maio de 2011

DESENCONTROS

Ela queria o começo, o ponto de partida, entrar numa máquina do tempo e voltar exatamente para aquele lugar, entretanto, não desejava ir sozinha, quisera partir levando consigo toda a experiência acumulada, todas as decepções, todas as bobagens que fizera e todas as alegrias fugazes a exaurir lhe as esperanças até o ápice do oco existencial que era agora.
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, fora exatamente naquele período do tempo para o qual ela desejava voltar presentemente que lera em “A Paixão Segundo G.H.” de Clarice Lispector esta frase que de forma súbita e sem nenhuma justificativa ressurgiu de algum lugar do seu subconsciente. Ela abriu a janela do quarto pela manhã e ouviu em sua própria voz “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, lembrou-se do quanto achou esta frase instigante no instante em que respirava vinte anos, na realidade, incompreensível, pois como o nada poderia ser frio e úmido? Para ela o nada era nada e ponto final, o nada era o vácuo, o completo vazio e o completo vazio não pode ter cheiro, nem sabor, muito menos temperatura e densidade, o completo vazio era capaz de nem existir, pois se todo universo é preenchido por diminutas partículas como poderia o nada existir?
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”..., depois da enésima repetição mental ela disse em voz alta e cheia de tédio com quem dissesse para a tagarela dentro da sua cabeça, “Tá bom, eu já sei, “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, sim e dai?”
As pessoas têm momentos adequados para entrarem em nossas vidas, por isso, tantos desencontros, os desencontros são, portanto, a “pessoa certa no momento errado”, a “pessoa errada no momento certo”, a “pessoa errada no momento errado”, pois, a “pessoa certa no momento certo”, isso sim, é o que todo mundo deveria ter. Neste caso, fora a opção “pessoa certa no momento certo”, a pior das três restantes é “a pessoa certa no momento errado”, pois somente ela é capaz de despertar no homem o desejo de construir a tal máquina do tempo.
Por isso ela queria volver, mas volver acompanhada, não queria voltar a ter 20 anos, queria viver 1992 em 2011, aos 39 anos. Não. Para que inventar estórias? Ela não queria reencontrá-la, coisa perfeitamente possível, ela queria encontrá-la pela primeira vez agora em 2011 e aos 39 anos, queria que se apaixonassem como se apaixonaram, pedi-la em casamento logo no primeiro dia, pois não havia dúvidas de que em 2011, diferentemente de em 1992, seria para sempre, foi o que ela prematuramente concluiu ao chegar ao nada frio e úmido daquela manhã de sol.
“Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”, de fato e contraditoriamente o nada existia, o nada tinha forma, tinha cheiro, tinha até endereço pré-definido, o nada vivia silenciosamente nas paredes daquele quarto escuro do qual ela fugia, para o qual ela protelava voltar todas as noites, inventando, por isso, inúmeros compromissos que lhe permitiam andar a esmo pela rua até altas horas. As praças, os passeios públicos, qualquer lugar era melhor que dividir a cama com o nada e por isso ela acumulava noites insuficientes, como a anterior, melhor, a madrugada finda em que não ela, mas o seu corpo fadigado se desligou às quatro e meia.
“As coisas acontecem exatamente quando devem acontecer. O nada existe, mas é abstrato e não, não é possível construir máquinas do tempo”, pensou. O sol ardia nos seus olhos, há muito que ela não olhava o dia sem óculos escuros, os óculos que eram a única coisa que ela via adiante. Ela não tinha objetivo, pois seu único objetivo era construir uma máquina que descobrira impossível, ela estava sozinha, pois até o nada lhe furtava cuidado, o nada naquele momento era todo confabulações com a aborrecida rotina que ela estava vivendo.
“Acabou!”, lembrou. Como deve ter doído na outra escutar esta palavra, como lâmina japonesa abrindo-lhe o coração de um só golpe, “Acabou!”, uma palavra e perdera para ela mesma, irremediavelmente, a pessoa mais especial de todas. Pior! Perdera para sempre, posto que, se aquela que afirmava não existir o nada por razões muito lógicas não existia mais como acreditar na possibilidade de reencontrar alguém 1992 em 2011. Além, como afirmar que estaria feliz se não tivesse dito a amolada palavra.
Eram muitas divagações para uma manhã de arder os olhos, e tudo porque Clarice resolvera se levantar do túmulo para acordar lhe a noite mal dormida com a frase: “Eu cheguei ao nada e ele era frio e úmido”.
Ela fechou a janela, ligou o abajur e enquanto procurava na prateleira caótica o tal livro, disse para que também as paredes ouvissem: “É Clarice, eu também cheguei ao nada e você tem razão, ele realmente é frio e úmido, agora preciso reler o livro, preciso lembrar do que vem depois”.

Um comentário:

  1. A palavra "acabou" inevitavelmente me leva às expressões "nunca mais" e "pra sempre", acho que é por isso que eu não gosto dela...

    me dói o coração em pensar que ainda não terminei de ler esse livro da Clarice...

    Adorei o texto!

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